12 de novembro de 2012

Overtraining



E NÃO É QUE MERCURIALI TINHA RAZÃO
Complicações antes restritas a atletas chegam as academias


     Alguém ainda consegue lembrar do tempo em que academia era sinônimo de capricho e atleta de vagabundagem? É, não faz tanto tempo assim. Mas a ciência evoluiu e com ela uma nova realidade instaurou-se em nossa sociedade. Assim como tecnologias da F1 são adaptadas para carros populares, o que antes era restrito aos atletas incorporou-se ao cotidiano popular. Hoje é comum um paciente sair do consultório médico com a recomendação de ingressar em alguma prática desportiva. O mais louco é que esse relacionamento entre medicina e exercícios físicos em prol da saúde remota do século XVI, é e creditado ao professor de medicina Geronimo Mercuriali, autor do primeiro livro ilustrado em medicina do esporte. A partir do século XVIII, graças ao entendimento das escolas filosóficas que corpo e mente se destinguiam e a visão religiosa de que o corpo era objeto de tentação, este conceito foi sendo abandonado para retornar com força total nos últimos anos. Tudo bem, isso faz um bem danado para inúmeras enfermidades e, é claro, para nossa auto-estima, mas da forma aleatória como vem sendo seguida essa recomendação, daqui há muito pouco tempo outra realidade exclusiva aos profissionais do esporte será inserida no vocabulário comum: a sindrome do overtraining. 

     Como o nome diz, é o excesso de treinamento associado a distúrbios nutricionais e do sono que podem acarretar aumento da ação do sistema nervoso simpático que reflete com o aumento da freqüência cardíaca, pressão arterial e gasto calórico (perda de peso muscular), náuseas e vômitos, insônia, lesões repetidas, depressão do sistema imune com maior incidência de doenças oportunistas (resfriados), baixo rendimento, depressão e perda da libido. “Há dois tipos de overtraining, um que é por exercícios monótonos - uma série enorme do mesmo exercício - e o tipo que é devido a conjugação de treinamento, competições e o estado psicológico do paciente naquele momento”, explica a Dra. Fernanda Alt do Nascimento, uma das 11 fisioterapeutas que integram a equipe supervisionada por Nilton Petrone da clinica Fisiobarra. Ela vai além e traça um perfil do quadro atual: “Atualmente as mulheres na faixa etária dos 15 aos 30 anos são mais afetados que os homens porque a cobrança estética na mulher é maior. Se você passar três horas em uma academia, verá que são as mesmas mulheres, que não comem porque não podem ganhar peso, que malham nesse tempo. Não são atletas, a gente chama de "atleta de fim de semana". É o cara que joga bola só nos finais de semana ou aquele que vai a academia sem ter um acompanhamento ou o copia de outros, e nem sempre o exercício que é adequado para um é adequado para todos, então deve haver uma série personalizada, pelo menos a princípio”, alerta. 

     Seguindo essa orientação, fomos conversar com um especialista. Há dois anos trabalhando na academia Estação do Corpo, que concentra em suas duas unidades 6.000 alunos, o professor de musculação e avaliação funcional Marcos Soares dos Santos, aconselha: “Já é sabido que acima de 1:30hs de exercícios é mais que suficiente para obter benefícios. O certo é trabalhar dentro de uma intensidade especifica para obter uma melhora no condicionamento. Por exemplo, quando se faz um treinamento de força, o ideal e que esta varie em torno de 80% do limite máximo de esforço, o que faz que a pessoa utilize mais as estruturas e fibras musculares e tenha resposta num espaço de tempo menor. Com isso você consegue fechar um programa de 40 minutos com 8 exercícios de 12 repetições. Se você considerar que a pessoa faz uma aula de ginástica, 1hs, e 40 minutos de atividade aeróbica, terá preenchido esse tempo”. 

     A triatleta Fernanda Keller concorda que a qualidade do treinamento é fundamental: “No começo eu treinava muito mais, hoje preciso menos para atingir meu potencial”, diz, com conhecimento de causa. Há 20 anos praticando triathlon, seis vezes medalhista de bronze no Ironman e hexacampeã do Troféu Brasil, Fernanda treina 5hs por dia seis vezes por semana, natação, ciclismo, corrida e musculação, além de fazer yoga, shiatsu, massagem sueca e bioenergética. Parece cansativo, mas ela diz que aprendeu a importância do descanso, o que faz bastante. 

     Agora, atenção: atividade física depois das 19hs, nem pensar. De acordo com o endocrinologista e professor de Educação Física Oswino Pena, esta prática afeta o sono e o apetite. “A pessoa tem que dormir a quantidade de tempo necessária para sentir-se bem e não ficar com sono ou cansada durante o dia. O sono é dividido em dois tipos: rem e não rem. O rem é aquele em que a pessoa descansa mais. Para ter mais este tipo, deve-se reduzir bastante o nível de estresse”, ensina. 

     Como esta síndrome deriva dos atletas, é claro que eles estejam predispostos a adquirí-la. Profissionais do esporte são unânimes quanto a “culpa” da evolução dos esportes na última década. “O atleta sempre tenta se superar e aí ele não tem limite. Um centésimo faz diferença para um velocista, e ele só atingi isso treinando. É prejudicial, mas tem esse lado da competição, que hoje em dia é muito maior, a superação em cima dos índices são enormes. Se você pegar um atleta olímpico de qualquer modalidade e um da Olimpíada de 80 (Moscou), verá que a diferença de tempo é absurda”, observa Fernanda Alt. Só para se ter uma idéia, pegando o recordista de 1992, o marroquino Noureddine Morceli, e o primeiro recordista, o americano Kiviat (1912), com uma diferença de 27 segundos entre seus tempos, Morceli chegaria 189 metros na frente de Kiviat! 

     Como este é um pais de experts no esporte por excelência, não e difícil imaginar a pressão psicológica que estes atletas sofrem. O que isso tem a ver? Simplesmente porque o overtraining é um estresse físico e geralmente esse tipo de estresse esta relacionado ao mental e vice-versa. “Por exemplo, o cara que tá treinando para um Vale Tudo fica tão tenso que passa a ter um estresse mental. Vinte e quatro horas antes de uma competição a freqüência cardíaca pode aumentar de 70 para 110 batimentos. Isso aumenta o gasto energético e na hora de lutar ele já esta cansado. Tanto que tem uma série de atletas que são bons em nível recreativo, mas não servem para competição. O atleta bom é um fenômeno. Nem todos conseguem, dedicação exclusiva pode melhorar, mas não é garantia de sucesso. Pega um Wallid, ele é ruim, mas vence na insistência. Se ele fosse bom lutador, ninguém ganhava dele. Outros são talentos, como o Libório, só que ele fica tenso, não aguenta o estresse. Um cara que é bom tecnicamente e para competir é o Bustamante. Fica calmo, tranquilo. O que ele tem de ruim? O preparo físico. Ele tem uma boa resistência aeróbica mas pouca força”, diagnostica Oswino. 

     E por falar em Wallid, ele garante que depois de várias crises de overtraining, quando febres, resfriados e dores musculares eram constantes companheiras, tomou juízo. Escolado, diz ter adquirido sensibilidade para diagnosticar o possível aparecimento da síndrome. Como os outros, reconhece que o pique do treinamento antes das competicoes somado ao estresse emocional facilita o overtraining. Estresse esse que o zagueiro do Botafogo Denis diz estar isento. Fora apenas de um dos jogos que o clube disputou no Campeonato Brasileiro, quando o que não faltou ao time foram motivos para estresse, Denis credita seu controle emocional a sua espontaniedade e a ausência de problemas físicos a vida regrada que leva. “Consigo repor com alimentação e sono. Você deve abrir mão de certos prazeres em prol do esporte”, diz. 

     Mas que alimentação “milagrosa” é essa? Para começo de história, ela não tem nada de mágica. O que acontece é que o que ingerimos responde a 50% das respostas do exercício físico, daí a importância de uma dieta equilibrada. Aliás, já dito por Herodicus de Selymbria, contemporâneo de Sócrates, ao descrever a “ginástica médica”, onde o treinamento deve ser balanceado nas atividades físicas e na dieta. “O ideal e fazer seis refeições por dia, de 3 em 3hs, com poucos alimentos em cada uma, contendo lipídeos, glicideos e proteínas. A melhor dieta é aquela que o paciente consegue fazer”, ensina Dr Oswino. 

     O diagnóstico de overtraining é um caso a parte, até porque ninguém chega num consultório com esta reclamação. Na maioria das vezes, o que as leva a procurar ajuda medica são as repetidas lesões e o cansaço fora de propósito. Ou seja, quando o processo já instaurou-se. “No início, na fase da crise, é essencial a pausa no treinamento. Uma a duas semanas, depende de cada caso. Como nós pregamos a recuperação rápida, o paciente nunca fica mais de 1 mês em tratamento por causa de tendinite ou estiramento”, ressalta a fisioterapeuta da Fisiobarra. Lá, o trabalho de recuperação é feito utilizando frio, calor, água e movimento, configurados e adaptados a cada paciente. Na Estação do Corpo o aluno não é privado de malhar, mas tem sua intensidade de trabalho reduzida. Como o afastamento pode afetar o psicológico do atleta, Oswino recomenda ações recreativas: “Tipo jogar futebol. É até bom para combater o overtraining uma atividade que relaxe a pessoa”. 

     Também conhecida como burnout, staleness, síndrome da fadiga crônica, overwork, overloadtraining, overfadigue, overstrain e desajuste de adaptação, a enfermidade pode atingir qualquer um. Nem tanto assim. “Quem segue um treinamento adequado, associado a um bom descanso e boa alimentação, dificilmente terá um quadro de overtraining”, simplifica Oswino. Ou seja, ou você se cuida ou começa a educar seus ouvidos para escutar esta expressão daqui em diante.

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