No escritório de sua firma de segurança - onde a Bíblia e livros sobre jiu-jitsu e segurança particular convivem pacificamente sobre a mesa - Mestre Francisco Mansour, ou simplesmente "tio Chico", me recebeu para responder essa e outras perguntas dando uma aula do verdadeiro significado da Arte Suave.
Descendente de um "tal" de Samuel que em 1210 ocupou uma região montanhosa do Líbano chamada Mansour, que deu origem ao único ramo da família, Francisco Mansour é o exemplo do homem que ousa sonhar. Criado no interior de Minas Gerais, veio para o Rio, se formou em Direito e há 32 anos exerce o cargo de delegado de polícia. Não por conscidência, o mesmo tempo que montou a academia Kioto.
Com a mesma simplicidade com que cita Demóstenes, Sócrates, Galileu Galilei, Pasteur e Abraham Lincoln - fato raro no meio - pede para continuar lembrado apenas como professor de jiu-jitsu. O que por si só não é pouco. Francisco Mansour é um dos doze que podem honrar a faixa vermelha e preta de mestre 8º grau e teve o privilégio de conviver com duas gerações Gracie nos 42 anos que dedica à Arte. Talvez não seja à toa que a explicação do brasão de sua família - uma mão saindo de uma nuvem - seja "divinamente protegido".
T- O que é necessário para alcançar o título de Mestre?
Mansour - Que o professor tenha no mínimo 50 anos de idade e 30 de magistério comprovados, essas são exigências da CBJJ, faz parte do Estatuto (NR: O parágrafo descreve a distribuição das vagas: 20 para mestre 7º, 12 para 8º, sete para grande mestre 9º e cinco para grande mestre 10º. Está escrito: "As categorias de grande mestre 10º não serão preenchidas jamais, uma vez que pertencem aos pioneiros do jiu-jitsu no Brasil"). Fiz uma festa para os decanos receberem suas faixas, mas quem teria a audácia de entregar a faixa ao criador do jiu-jitsu brasileiro? A solução foi cada preta (NR: João Alberto Barreto, Hélio Vigio, Pedro Valente, Róbson Gracie, Pedro Hemetério, Francisco Mansour, Rorion Gracie, Armando e Carlison Gracie) graduado por ele segurar um pedaço. O Hélio formou 22, mas afirma que se pudesse cassar pelo menos oito desses, o faria.
T- O Sr. concorda?
M- Sim. O jiu-jitsu não é uma modalidade de luta para as pessoas sairem brigando por aí, foi feito para defesa pessoal e 90% dos professores do Rio a desconhecem; não são professores. Lutador faixa preta qualquer um pode ser. Ele começa lutando, se preparando - igual cavalo de corrida - e começa a ganhar porque o jiu-jitsu agora tem rounds onde prevalece aquele que estiver melhor preparado fiicamente, o marombeiro.
T- O conceito de que a técnica supera a força está se invertendo?
M- Hoje ninguém luta para fazer uma finalização, criaram um monte de regras que atrapalha o trabalho do fraco. Uma inversão, por exemplo, vale dois pontos. O que é uma inversão? Nada. O Hélo acha que o lutador só deveria usar a gola do kimono. O jiu-jitsu visa demonstrar o domínio técnico sobre o adversário, e não para ficar amarrando a luta ou agarrando o kimono sujo do outro, ou tão apertado que não dá nem para pegar na perna da calça porque o cara já vem com o kimono preparado, sob medida; parece mais um collant. Não é o jiu-jitsu que eu aprendi nem o que ensino.
T- Numa entrevista que vi do seu Hélio, ele dizia que os alunos não foram feitos para pensar, mas para executar. Isso é o correto?
M- E de fato é. Não há necessidade de aprender um golpe a cada dia. Tem que repetir 10, 20, mil vezes a mesma posição. O Cara coloca aquilo no subconsciente e começa a fazer por instinto. É quando ele torna-se um verdadeiro lutador de jiu-jitsu, porque não precisa pensar para fazer, faz porque está acostumado. Agora vamos imaginar um treino do Rickson com o Royce, muito técnicos e bons. Aí não será só por instinto e aquele que errar, perde. A técnica do Hélio é jogar em cima do erro alheio; não é você que ganha, é o outro que perde.
T- Por falar nisso, o que vêm a ser (o mito) Rickson Gracie?
M- É um caso à parte. Tudo que Deus podia dar à um lutador de jiu-jitsu, deu à ele. Eu acompanhei seu crescimento, era comida na hora e descanso de 15 minutos depois. Às vezes estávamos em campeonatos, eu e o pai dele sentados à mesa, o Hélio assobiava e o Rickson vinha correndo para comer. O Rickson foi criado na mão, como costumo dizer. Foi preparado, moldado. O Hélio foi um escultor e esculpiu o filho no que ele é, o maior lutador do mundo, a meu ver. Depois dele vem o Royce, que também é privilegiado no tamanho e condição física e depois, como o mais técnico, o Royler.
T- O senhor conviveu com o mestre hálio, poderia definí-lo?
M- Hoje o Hélio é um mito, uma lenda viva. Deus dá dom à algumas pessoas. Pasteur veio ao mundo com a missão de inventar uma vacina que salvou várias vidas; Thomas Edison, a lâmpada. Comparo o Hélio à essas pessoas pelo bem que ele fez com seu jiu-jitsu, criado baseado no Indiano onde a técnica supera a força. É possível corrigir deficiências sérias nas pessoas; eu, por exemplo, era altamente agressivo, brigava à toa, e hoje sou esse homem de paz, calmo. Sempre segui o que ele falou e o resultado é o que tenho hoje. Têm defeitos como todo ser humano, mas tem qualidades que você não faz idéia.
T- Seu pai era fã do Mestre Hélio. Como ele o conheceu?
M- Meu pai faleceu há alguns anos, mas era um homem de uma evolução mental muito grande. Comparo-o muito com o Hélio, 80% da maneira de pensar deles era igual. Ele aprendia jiu-jitsu com um de seus funcionários que desetara da Marinha na época da guerra e tinha sido aluno do Hélio. No pós-guerra houve uma grande falta de farinha e meu pai tinha que vir ao Rio constantemente para abastecer sua fábrica de macarrão no interior de Minas. Numa dessas vezes, ele foi na academia do Hélio.
T- E como foi o seu primeiro contato com o Mestre Hélio?
M- Eu treinva Judô na ACM e ele chamava todo judoca de frouxo. Fui na academia dele para dizer que eu não era.
T- Como era o jiu-jitsu nesta época?
M- Muito bonito e muito técnico. A guarda de pernas era um negócio muito sério. Depois houve a necessidade de apressar a luta e apareceu o triângulo. Isso diminuiu muito a técnica porque 90% das finalizações hoje são triângulo e arm-lock na guarda. Os detalhes técnicos do jiu-jitsu são maravilhosos.
T- O Sr. é apaixonado pela Arte ...
M- Jiu-Jitsu é minha vida. A única coisa que sou fanático, no resto sou um cara normal como qualquer outro.
T- O Krauss falou isso e que o resto era consequência. Até onde isso tem fundamento?
M- Comecei uma academia de jiu-jitsu em função de competições, mas aprendi com o Hélio que Vale-Tudo e a parte financeira da academia não são a essência. A essência é o que você pode ajudar seu semelhante, é o que você pode fazer como educador. É o garotinho que não consegue abotoar a camisa ou amarrar o sapato porque não tem coordenação fina para isso e, de repente, você vê que ele começa a dar nó até em pingo d'água. Se o jiu-jitsu for bem administrado ele te faz superar qualquer problema físico ou psicológico, não digo neurológico porque jiu-jitsu não cura e nem é médico. Na minha academia tenho uma preparação de exercícios para aguçar a psicomotricidade da pessoa deficiente. Preparar um homem para enfrentar a vida é muito mais difícil do que preparar um homem para lutar no tatame. O homem já é lutador desde que o mundo é mundo, é um dominador por si só, temos que trabalhar o desenvolvimento deste intinto e não confundir agressividade com defesa. Há uma razão para um garoto só querer saber de confusão, e o primeiro passo é saber qual é. Esse é o trabalho que a Kioto faz, ela foi criada com a intenção de preparar a pessoa para o futuro.
T- O Sr. organizou uma metodologia de trabalho dividida em dez livros com 42 aulas cada e 985 posições e reune-se a cada semana com os professores de sua academia onde cada um tem voz mas a opinião final é a sua. Como é isso?
M- Eu aceito a personalidade de cada um. Na hora de ministrar a aula ele pode até criar uma maneira de fazer, contanto que siga o livro, que eu atualizo de tempo em tempo. Eles se revezam no comando das seis academias porque não gosto que ninguém se intutule o dono da boiada. Você não é minha aluna, é aluna da Kioto. Nenhum professor trabalha comigo se não tiver o 3º grau completo ou em curso.
T- Porque a composição destes livros?
M- Foi mais por ver a falta de sequência, de ordem cronológica nas academias que íamos. Nós tínhamos a defesa pessoal por escrito que o Hélio nos deu - uma criação dele - mas o jiu-jitsu em si, detalhes de luta, exercícios de coordenação, não existia nada. Criei um livro que chama "curso de adaptação". Antes do cara aprender defesa pessoal, dou este curso, aí já é uma maneira minha de ensinar, onde ele aprende noções de distância, movimento de ataque e esquiva, entrar numa queda, trabalho de quadril, assim ele se familiariza com o jiu-jitsu e parte para o segundo livro, que é a defesa pessoal. Ele aprende mais fácil e não esquece. O livro três são posições de luta. Por exemplo, do primeiro ao décimo livro, têm 42 estrangulamentos, 60 raspagens, 29 chaves de braço, que você só aprende com o tempo, gradativamente, o que eu chamo de ordem crescente de controle e inteligência.
T- O senhor considera inviável a consciliação das atividades de professor e atleta. Porque?
M- Como professor ele é obrigado a oferecer facilidade para o aluno aprender, aumentando gradativamente este aprendizado, então ele não estará com reflexo de lutador, mas de educador. Quando ele for competir, deve só treinar. Dando aula e competindo ele nunca vai ser nem uma coisa nem outra, não consegue chegar ao supra-sumo da coisa, a não ser que disponha de tempo para fazer as duas atividades paralelamente.
T- A alegação é que ficou difícil manter-se só com o lucro da academia. Como lidar com isso?
M- Obviamente, você dividir um bolo por dois é mole, todos comem. Mas quando você começa a dividir o bolo em 8, 10 fatias, diminui a quantidade e você continua com fome. A medida que minha família foi crescendo e coloquei meus filhos e sobrinhos trabalhando comigo, passei a dar aulas 4hs por semana e montei uma empresa de segurança para completar a deficiência financeira que me foi imposta. O que atrapalha muito também é que antigamente as pessoas eram obrigadas a frequentar as boas academias, hoje qualquer pé-rapado dá aula. Um faixa azul dar aula é o maior absurdo, ele não está preparado nem para ele, que dirá para preprar os outros.
T- Como controlar?
M- Quem deveria controlar era o Estado. A Lei nº 2.014 de 92 proíbe àquele que não for federado ministrar aula, mas tá cheio de faixa azul e roxa dando aula em colégios e condomínios, é mais barato. Às vezes, não sabem nem a idoneidade nem a índole do cara e ele tá ensinando às pessoas a seguirem seu caminho. O professor se torna um herói e o aluno vai imitar as falhas dele. A delegacia deveria autuar esses "professores" por exercício ilegal da profissão.
T- Como destringuir?
M- Hoje tem um monte de gente que trabalha bem com jiu-jitsu não sendo Gracie, e muitos que têm o sobrenome e trabalham mal. O Hélio é que fala o nome dos que servem ou não e não sou eu que vou repetir, é assunto de família deles. Meu nome é Mansour, não é Gracie e tive que lutar muito para chegar onde cheguei. Segui rigorosamente os caminhos que o Hélio traçou para eu ser o Mansour que sou hoje, respeitado, considerado no meio, conhecido internacionalmente e com uma academia conceituada. Para mim o Hélio é um homem que nasceu com uma estrela. Às vezes falo do Hélio de uma maneira quase que idolatrada. Não é isso. Ele é um homem como outro qualquer, passível de erros, mas com um caráter digno de ser imitado e um conhecimento que ninguém têm: o jiu-jitsu dele. Eu não chamo de jiu-jitsu Gracie, mas de jiu-jitsu do Hélio Gracie. Se eu disser jiu-jitsu Gracie estarei generalizando como se todos tivessem a competência do Hélio, e não têm.
T- O que ocorre é que esses "assuntos de família" ultrapassam as quatro paredes e de repente aparece um Gracie criticando outro ou desprezando a palavra do Mestre Hélio. Qual sua opinião a respeito?
M- Se falam do Hélio é por incopetência ou por mágoa. Na verdade todos eles devem o que são a ele, especialmente os mais velhos que foram criados por ele. A briga entre eles é pelo poder. Cada um quer ter mais. É interesse financeiro, é são essas coisas que atrapalham o crescimento real do jiu-jitsu. O Hélio manteve o escritório e eu a secretária da Federação por um ano porque ela não tinha como produzir, isso é amar o jiu-jitsu. Agora, o cara ficar ganhando dinheiro fazendo torneiozinho, vendendo isso ou aquilo não é amar a Arte, é interesse próprio, é pôr dinheiro no bolso. Daí que saem as brigas. No mundo inteiro, as guerras foram por interesse financeiro.
T- Em outra ocasião o senhor disse que o Libório seria uma boa liderança. Porque?
M- É um rapaz calmo, consciente, um líder e que até agora só me passou interesse pelo desenvolvimento do esporte. Tenho uma simpatia muito grande pelo Murilo Bustamante também, são pessoas que eu respeito muito pelo o que apresentam de luta. Não são caras que falam besteira, são homem que têm linhagem. Eu, por exemplo, daria a faixa preta aos dois sem nenhuma restrição.
T- O Sr. crê num jiu-jitsu olímpico?
M- É meu maior sonho. Aí verão o que é trazer medalhas para o Brasil.
T- Mas é muito chão...
M- É, mas nós vamos caminhar esse chão. Você ajudará do teu jeito e eu do meu, porque vou viver até os 108 anos, então tenho mais 50 para ajudar o jiu-jitsu.
T- O Krauss também me disse que o senhor se emociona quando um ex-aluno seu leva o filho ou o neto para treinar na sua academia. Como é ver os filhos do mestre Hélio, que o senhor acompanhou o crescimento, lutando e ganhando?
M- Quando eles estão lutando minha torcida é muito grande, é como se fossem meus irmãos. É muito gostoso pela amizade e vínculo que tenho com o Hélio. Os nossos filhos, os meus e os dele, são como a continuação da mesma família. Quanto tá competindo a academia do Royler contra a minha, lógico que estou torcendo para o meu atleta.
T- E em relação aos filhos ou netos de seus ex-alunos?
M- Isso é quase sempre, já estou na terceira geração. Eles levam o filho e pedem: "Tio Chico - eles me chamam de tio Chico - vê se o senhor faz com ele o que fez por mim". Chega a ser emocionante. Você já viu o Fabrício fazendo uma apresentação? Eu fico com nó na garganta, aquilo me emociona demais. Ele é um rapaz cego e consegue fazer aquele jiu-jitsu, ele foi campeão estadual, é muita coisa. Fabrício hoje é empresário, é ele que faz as medalhas da minha academia.
T- Em que o jiu-jitsu ajudou na recuperação dele?
M- Ele mesmo fala que o jiu-jitsu foi o apoio que encontrou. No princípio foi muito difícil para ele, inclusive foi preciso muita paciência em convencê-lo a voltar. Ele traz desenhos e discute comigo como se estivesse vendo, fico impressionado. Tenho pilhas de cartas de pais agradecendo nosso trabalho junto à seus filhos. Isso é uma herança que não mostro para os outros para não expôr as deficiências alheias, mas é onde a gente olha e fala: Valeu!
Meu Mestre há cinqüenta anos.
ResponderExcluir